«Manual de instruções para cegos»

«[…] Via perfeitamente tudo o que estava à sua volta.
O Macintosh em cima da secretária, os quadros com letrinhas nas paredes, as flores artificiais na jarra, o lindo dia que estava lá fora, via, nitidamente, o homem que estava à sua frente de bata branca. Os seus lábios mexiam. Dava para ver.

- Pois as análises de rotina que fizemos revelaram que o senhor tem uma doença muita rara.
- Uma doença?, mas sinto-me perfeitamente bem. Só vim saber se era preciso ajustar a graduação.
- Pois....lamento....mas o senhor tem uma doença mesmo muito rara que chama Ocularis Extinguis.
- Ocularis Extinguis?
- Sim, quer dizer que vai ter uma perda gradual da visão, até à perda total. E é um processo rápido. Daqui a 6 meses pode ter a sua visão reduzida a 75%, sendo que garantidamente daqui a um ano a sua visão terá desaparecido totalmente.
- Mas, e não há nada que se possa fazer? Para evitar?, ou pelo menos para combater a progressão?
- Esta é uma doença tão rara, mas tão rara, que não existem sequer artigos sobre ela, quanto mais investigação ou pesquisa. Aliás, gostava de lhe propor fazermos um artigo científico com o seu caso.
- E o que é que eu faço à minha vida?
- Pois não sei meu caro. Sei que é um grande choque, mas infelizmente há muito pouco que possa fazer por si. À medida que a doença for progredindo podemos ir adaptando a sua graduação, mas vai chegar a um ponto que deixará de fazer sentido.

Pior notícia do que aquela só se fosse perder uma mão, ou mesmo as duas. E o que dizer se perdesse o olfacto?
Não, o olfacto não.
O olfacto é a ferramenta principal do meu trabalho. Sem ela não consigo cozinhar.
Um pé. Sim um pé. Um pé não me importava de perder.
Até podia ser a perna inteira.
Mas a visão? Logo a visão.

Quer dizer, até há um princípio teórico que me agrada. A grande percentagem de coisas que a visão capta são superficiais. Aliás, a visão instiga directamente a superficialidade e o preconceito. Sem visão um preto deixa de ser preto. Fica tudo preto.
E um cigano vestido de preto, deixa de ser um cigano vestido de preto, para ser um cigano preto, eventualmente vestido de preto. Um membro do Ku Klux Klan tira a indumentária ironicamente preta e descobrimos que afinal é um preto, como todos os seus colegas do Ku Klux Klan. Um espanhol preto com o fato da Zara é igual ao peruano preto que veste Armani, ou vice versa. Não existem mulheres feias, nem bonitas, nem magras, nem gordas, nem novas, nem velhas, existem apenas mulheres. Pretas. Crianças pretas. Árvores pretas. Pouco interessa que árvores são, nem se são bonitas. Interessa é que produzem oxigénio e fazem sombra. A sombra que me refresca nos dias mais quentes do Verão, verão não os meus olhos, mas que curiosamente também é preta. Eu sei.
Os pretos que antes serviam os interessantes dos brancos, são agora os pretos que servem os interesses dos pretos. Na escuridão, preto que rouba a preto bebe um golo de cianeto?

A visão só mostra aquilo que queremos ver o que não deixa de ser um comportamento ambíguo para um membro. Mas a culpa não é do membro, é do que está atrás dos olhos e entre as orelhas.
Se for disposto a achar que a Torre Eiffel não é assim tão alta, ela é alta ou é baixa?
Por outro lado, se não tiver a possibilidade de ver a Torre Eiffel, ela é alta, baixa, ou preto?
Sem ver, perdemos menos tempo e ocupamos menos neurónios nas tarefas de pré concepção do que seja.
Quando algum novo amigo descobre que sou Chef num restaurante com duas estrelas michelin diz sempre:
- Ahhhhhh nouvelle cuisine.....uma pessoa sai de lá sempre com fome.
Daí posso colocar um bife de 500 gr num prato mesmo muito pequenino que a porção vai ser sempre pequena. Mas se vendar os olhos é ou não uma porção gigante de preto e de comida?
No fundo, no fundo, as pessoas que vão ao meu restaurante e as que não vão, são as mesmas. Preconceituosas e superficiais.
Uns querem ver porções pequenas e outros querem ver porções imaginativas e bonitas. Aparentemente nenhum deles quer sequer comer e são os dois reféns da visão.
Quando ficar cego o meu restaurante vai ser só para cegos. Ou para quem esteja disposto a passar pela experiência sem o recurso à visão.
Quando tiver um cliente no meu restaurante ele não vai poder olhar para outras mesas e pensar que aquele é rico, que aquele é mal educado, que aquele fala alto demais, que aquela mala é Louis Vuitton, que aquela mala da Louis Vuitton só pode ser do prego, que aquela mala da Louis Vuitton, que só pode ser do prego, está a ser usada por uma cabra, loira e sem qualquer nível.
A cabra, loira e sem nível, com a mala da Louis Vuitton, que só pode ser do prego, passa a ser a preta, que se não gritar, até tem nível, com uma mala preta da Louis Vuitton, que até pode ser do prego. Não vai estar lá ninguém para ver que é do prego.[…]»

In «Manual de Instruções para Cegos»

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