Vem cá meu torresminho.



Às vezes estamos tão preocupados em falar da crise e a desdenhar o novo Fiat Punto do vizinho que nos esquecemos dos verdadeiros privilégios que a vida nos dá. 
Ser açoriano, ou viver em São Miguel, e fazer uma viagem de carro de apenas 30 minutos para chegar ao Hotel Terra Nostra é uma dádiva quase tão grande como o nascimento do Cristiano Ronaldo. Muito menos estará ao fácil alcance da maioria dos comuns mortais que têm de viajar milhares e milhares de quilómetros para chegarem aonde nós chegamos. Sem stress. Sem trânsito. Sem complicações.
O Hotel Terra Nostra, que reabriu em Junho após uma profunda remodelação e requalificação apostou também no melhoramento e modernização das suas cartas de bar e restaurante.
Aquando da minha primeira visita, logo em Junho, foi notória a mudança introduzida na carta. Chegaram novos conceitos, novas ideias que se entrelaçavam com alguns pratos icónicos como o cozido ou os filetes de abrótea. Tenho que ser sincero, como é meu apanágio, estava tão curioso, mas tão curioso que acredito ter ido cedo demais. Alguns pratos ainda estavam “colados com cuspo”. Sei que a observação estará correcta quanto mais não seja pela notória melhoria que senti quando lá fui pela segunda vez, já no fim do Verão. 
Por ter esta tendência suicida para a verdade e para o desbocamento fácil confesso que quando o Carlos Rodrigues, o Director do Hotel, me convidou para participar no jantar de lançamento da Carta Outono/Inverno do Terra Nostra pensei que no fundo, no fundo, ele estaria a precisar de alguém que depois ajudasse a levantar os pratos e a lavar a loiça. E de boca calada e já agora fechada.
Porque mereceria eu tamanha distinção e honra? Mistério que até hoje está por resolver, diga-se, porém, o convite era mesmo para me sentar e comer como fazem todas as pessoas civilizadas.
Contado assim deste modo simplista fica complicado perceber a emoção e a comoção quando nos começaram por servir um flute de Dom Pérignon, vintage de 1996. Quase que se podia dizer que a partir daqui foi sempre a descer. E foi. Desceu um excelente Diga? da adega de Campolargo, um Romeira de 1970. Sim, 1970 e absolutamente maravilhoso. Um dos melhores tintos que já provei. E o Porto Vintage 1999,  que se destacaram, obviamente. Com este cartão de visita não me admira que a carta de vinhos tenha recebido uma honrosa distinção na Revista dos Vinhos. É por demais evidente que o Terra Nostra tem uma das melhores garrafeiras do país. Até o Cristiano Ronaldo concordaria.
Já a subir foi o sentido que foi tomando a refeição propriamente dita, prato após prato num menu de degustação com 9 pratos.
Como vivemos na era do Twitter e ninguém está para ler mais que 140 caracteres seguidos, vou apenas sublinhar e destacar os pratos que mais me maravilharam, de uma carta que no seu todo dá uma nota evolutiva. Sente-se um enorme amadurecimento de ideias, e os conceitos muito mais bem trabalhados e explorando todo o universo de produtos regionais e produtos do próprio Parque. 
É uma questão de patamares, a primeira ementa pós renovação colocou o Terra Nostra num patamar. Este patamar foi consolidado e trabalhado e agora com a carta Outono/Inverno evoluí-se de forma serena e tranquila para o patamar seguinte.
Quanto mais não seja por exclusão de partes, dificilmente haverá outro restaurante neste patamar. 
Os meus pés foram arrancados do chão logo no amuse em que nos serviram um cogumelo Boletus, apenas com azeite extra virgem e flor de sal. “São cogumelos do parque Senhor”. Tratou-me por senhor porque deve ter percebido que eu estava no céu. Nenhum prato no mundo inteiro pode ser igual a este. E está tudo dito.
A omelete com queijo Castelinhos um prodígio técnico. Não sei se existem muitas pessoas que saibam fazer uma omelete, mas o Chef do Terra Nostra sabe e isso chega-me para já. Cremosa no centro e cheia de ar. O único reparo é em relação ao queijo que acredito existir melhor nos Açores. Jamais São Jorge, mas quem sabe ali para o Pico?
No seguimento, e numa das sequências mais fortes da ementa entra o Caldo Azedo, a minha némesis. O meu momento Anton Ego da noite, em que deixei cair a caneta de crítico e fui uma simples criança a comer o Caldo Azedo feito pela minha Avó. Irrepreensível e escrito com uma estranha humidade a apoderar-se dos meu olhos.
O entrecosto cozido a baixa temperatura, com pézinhos e boletus, mostra que os sabores de antigamente ajudam a credibilizar as notas de modernidade que podem ser dadas a um prato. Bolas, estamos aqui a falar de um torresmo. Já tinha ouvido falar na expressão meu torresminho, mas foi só ao provar este prato que compreendi esta expressão na sua plenitude.
Como gosto muito de aprender e usar expressões novas despeço-me com a seguinte consideração: O menu de Outono/Inverno do Terra Nostra está um torresminho. Ou é um torresminho? Não sei, mas creio que percebem a ideia.

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