Pode ter sido o segundo jantar do 10 Fest, mas é a primeira vez do Daniel Rego a escrever nesta baiuca.

(Em espírito de estreita colaboração, aqui vai o segundo jantar do 10 Fest degustado pelo Daniel Rego)

Anda metade do mundo a queixar-se de passar fome, enquanto a outra metade se queixa de comida aborrecida.
Pergunto-me, por que razão investem tanto tempo e milhões de dólares na busca pelos tesouros da Atlântida no fundo do oceano, quando podem por apenas 7€/kilo apreciar os atuais tesouros que se passeiam à tona das nossas águas?
Depois da fanfarra tecno-sexual de Faure e Cornu, entra na cozinha da EFTH um segundo casal de chef’s. Com uma postura mais serena e equilibrada, propõe-nos um cruzamento entre a cultura gastronómica asiática e a matéria-prima dos Açores. Paulo Morais e Anna Lins apresentam um menu de aparente simplicidade, mas com um forte compromisso entre técnica, estética e ética: trilogia estruturante de qualquer obra humana de qualidade.
Temos que reconhecer a sua audácia, exercitada no seu restaurante em Lisboa, em trabalhar o “nosso” peixe com grande respeito e delicadeza. Do mar ao prato é cuidado com toda a dignidade que merece, seja rico ou pobre. Nesta terra, a velocidade a que se transforma matéria orgânica em borracha só é comparável a uma fábrica de sapatos na China. A diferença é que por cá a matéria-prima é de soberba qualidade, o que faz de nós um Midas invertido. O sushi que nos prepararam enaltece, e de que maneira, as qualidades vibrantes do “nosso” peixe. O boca negra foi uma formidável surpresa, em sabor e textura. E até a nossa lula, carinhosamente braseada sobre um maki de cavala. Todos com inesgotável potencial, mas é com óbvia dificuldade que algum deles se sobrepõe ao lírio, protagonista incontornável do jantar.
Apesar de toda a serenidade e equilíbrio, este menu manifesta alguma falta de coragem e atrevimento. Particularmente o medo de arriscar, tanto na conceção dos pratos, como na sua “harmonização” com a bebida. É mesmo estúpida esta palavra, não é? Harmonização… Pressupõe à partida que algo não está muito bem ou harmonioso. Há algo mais harmonioso do que um simples quadrado de lírio? Não, não há.
Como diz LAE:“no sushi é de peixe que estamos a falar”. Apesar de assentarem numa matriz mais tradicional do que experimental, a dupla de cozinheiros apresentou dois pratos de sushi. Os suspeitos do costume (soja, wasabi, gengibre) não faltaram à festa, claro. Será que havia aqui lugar para alguma experimentação? Provocação? Não tenho dúvidas! Vejamos. Como é que apenas uma framboesa pincelada com wasabi e servida num pires é capaz de nos conduzir num salto cósmico de descoberta degustativa? Timing e precisão. É imbecil achar que se trata de minimalismo. A pujança multissensorial desta combinação reduzida à sua simplicidade nua e crua toca o sublime. 
Já não acontece o mesmo com uma taça cheia de framboesas pois não? Claro que ficamos contentes. É engraçada, mas a experiência é gratuita e esgota-se em si própria. Sei que já comi framboesas diversas vezes, mas não me lembro de nenhuma em particular. Mas aquela f.d.p. de framboesa foi um autêntico detonador de memórias e sensações de prazer.
Não posso deixar de voltar à “harmonização”, pois faz-me realmente confusão. O tendão de Aquiles deste jantar e talvez do próprio UMAI reside na sua obediência à ditadura do vinho. Assistimos a uma cada vez maior insistência por parte dos sommeliers em arranjar casamentos para tudo o que comemos. Aqui ninguém fica solteiro! Não questiono a qualidade dos vinhos. Até acredito que alguns sejam a combinação ideal para certas confeções orientais, o que não seria a primeira importação ocidental. Podemos falar do sake, do vinho de ameixa ou até das dezenas de variedades de chá verde. Mas ainda assim acho que lhes falta a coragem do John Cage para compor 4 minutos e 33 segundos de silêncio. Estou certo de que muitos pratos beneficiariam do silêncio destes teimosos.
Mas esta opinião de um autêntico ignorante enícola vale o que vale.
Apesar da trivialidade e falta de arrojo na conceção dos pratos, temos a reconhecer a sua impecável execução, a qual deve ao esforço e energia dos professores e estudantes da EFTH. Entregam novamente provas que estão à altura destes desafios.

Que orgulho em ser açoriano! Parabéns!



Comentários

  1. Muito bem Daniel. Que grande estreia. Apesar de não ter estado lá concordo com a tua visão dos acontecimentos. Aliás, quando falamos no dia seguinte estava cheio de curiosidade se tinha sido ainda além da expectativa base: peixe.

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