Quem nasce primeiro? O à brás ou o bacalhau?


Continuando na senda de posts gastro históricos, resolvi falar hoje daquele que é considerado por muitos como o cozinheiro do século XX em Portugal, o mestre João Ribeiro, que se tornou popular no restaurante Aviz, que fazia parte do luxuoso Hotel com o mesmo nome. O Hotel Aviz, o antigo, e não o paupérrimo novo, terá entre as suas paredes os mais bem guardados segredos diplomáticos da Europa, quem sabe do mundo. Aristocratas, milionários, políticos influentes, todos lá passaram e para além de segredos, muito dinheiro e fetiches também devem ter deixado naquelas camas e naquelas mesas. Nos anos 50, chega a ser considerado pela revista Life como o Hotel mais sumptuoso do mundo. Nenhum hotel chega a este patamar sem ter uma cozinha igualmente sumptuosa. A determinada altura o restaurante Aviz é considerado como o 2º melhor da Europa. O que não deixa de ser um claro e provinciano exagero, tão português. Primeiro, porque o segundo lugar é uma merda. Depois, porque nesta altura já existiam uma série de críticos, guias que de forma justa ou injusta, mas até certo ponto criteriosa, categorizavam a restauração europeia e que foram omissos no que aos atributos do Aviz diz respeito. Para acabar, diria o que é que isso interessa quando estão entre os teus comensais regulares o Oliveira Salazar ou Calouste Gulbenkian, o hóspede mais famosos e que viveu no Hotel Aviz 13 anos? Calouste, quando sabia que não teria a possibilidade de comer no restaurante, levava um farnel. Isso diz mais que muitos guias, garantidamente.
O chefe João Ribeiro veio para Lisboa aos 13 anos, em 1918, sem fazer a mínima ideia para quem ia fazer o farnel anos mais tarde. E mais longe desta ideia deve ter ficado quando começou a trabalhar carregando carvão ou mesmo mais tarde, quando trabalhou numa tanoaria. Mas repare-se que há aqui um ritmo, um crescendo, uma aproximação às lides da cozinha, quando foi empregado numa casa de vinhos no campo das cebolas. Mas é efectivamente em 1921 que a sua formação como cozinheiro começa a ganhar contornos mais tangíveis. Primeiro no Suíço-Atlântico Hotel, depois no incontornável Tavares, e ainda depois no Hotel Universal das Pedras Salgadas, entre outros hotéis, até chegar ao Aviz em 1934.
Porque haveria de destacar o Hotel Universal dos outros? Porque é lá que se passa uma história engraçada e que me  confunde bastante. Diz-se que naquele Hotel se comia o melhor bacalhau seco em Portugal. O segredo passava por demolhar as postas altas num ribeiro que passava por detrás o Hotel. Supostamente, a água corrente fria e continua demolhará o bacalhau muito melhor que qualquer outro método ou técnica. Mais coisa, menos coisa, deve corresponder à verdade, pois já o vi descrito da mesma forma em vários sítios. Ora, naquele dia em particular, alguém devia estar com desejos de um prato de bacalhau e surripiou as belas postas que estavam destinadas para um jantar importante. E agora entra a parte que considero interessante, João Ribeiro, que na altura era o segundo cozinheiro, desfia um bom bocado de bacalhau seco em tiras muito finas e lava-o, várias vezes, em águas alternadamente quentes e frias. Depois de bem escorrido está pronto para confeccionar. Pica-se a cebola, refoga-se em azeite, junta-se o bacalhau, deixa-se saltear um pouco e depois junta-se a batata palha, os ovos batidos e salsa picada. Foi assim que o segundo cozinheiro safou o jantar, com aquilo que chamou de bacalhau universal. Ora porra, não é o que eu acabo de descrever o bacalhau à brás? João Ribeiro, atendendo à sua escola e as cozinhas por onde passou não saberia disso? Ou ao contrário do que a cultura popular nos diz, não foi o Sr.Brás que criou o bacalhau que ficou famoso com o seu sobrenome, numa tasca no Bairro Alto?
Em que história prefiro eu acreditar, sendo eu um fervoroso adepto do bacalhau universal? A resposta está dada.


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