Maurício, o melhor jogador de ténis da Fajã de Cima.



A linha do Equador que distingue a cidade do campo começa à porta do Café André Cordeiro, avança a direito pela Canada da Pena, dá a volta ao mundo e acaba na porta das traseiras do Café André Cordeiro. Para cima é campo, para baixo é cidade. Definição que faz com que o Clube de Ténis de São Miguel fique claramente na cidade, mesmo que fique acima do Parque urbano, onde popularmente acaba a cidade, está claramente abaixo da porta do Café Cordeiro. 
Mesmo sendo um desporto cada vez menos de elites, a verdade é que o poder de compra e nível de vida da cidade são muito mais compatíveis com a pratica do ténis que os do campo. 
Talvez por isso, não se registe a existência de nenhum grande jogador de ténis natural da Fajã de Cima, os pais dos meninos desta freguesia têm outras prioridades, dai o baixo envolvimento com Clube. A pequena maioria dos que lá passam fazem-no para apanhar bolas perdidas e esquecidas e usam-nas para todos os fins, menos o de jogar ténis.

Presidente do Clube de Ténis de São Miguel aos 11 anos de idade.

Comigo seria diferente. Se tivesse sido presidente do Clube de Ténis aos meus 11 anos de idade, teria aberto as portas do clube e do ténis a todos os meninos da Fajã de Cima, emprestando raquetes, bolas, equipamentos e teria dado escola. Tornaríamos o Clube numa superpotência do Ténis.
Neste enorme exército de meninos da Fajã de Cima a aprender a jogar ténis destacar-se-ia, desde cedo, o Maurício. 
Num encontro disputadíssimo a três “sets”, todos eles decididos no “tie break” Maurício transformou-se no melhor jogador da sua rua, ganhando assim acesso a disputar a final do inter freguesias com a Fajã de Baixo. 
É preciso dizer que na Fajã de baixo ficava o bairro do Calço de Furna, onde se encontrava a maior concentração de betos na ilha de São Miguel, e de pais com mais posses. Os melhores jogadores do Clube de Ténis de São Miguel eram todos da Fajã de Baixo. Tinham as melhores raquetas, trocavam os encordoamentos quase com tanta frequência como mudavam de “grip”. Eles podiam pagar as aulas, que eu presidente com 11 anos oferecia aos meninos da Fajã de Cima, com raquetas cambadas, partidas, com encordoamentos moles, ainda de origem, e bolas velhas, com ressalto duvidoso e uma rapidez que fazia parecer que estavam a jogar na superfície mais rápida de todas, a relva. Mas não, não era relva, nem era superfície rápida, era só cimento. 

Uma raqueta cambada e uns All Star rotos.

Mesmo assim, Maurício com toda a determinação e garra da Fajã de Cima, e mesmo com uma raqueta amolgada, cordas sem tensão, All Star rotos nos pés, e meias também elas esburacadas, foi alvo de chacota de todos os meninos bem, que apoiavam fanaticamente o campeão da Fajã de Baixo, o Nuno. Já os meninos da Fajã de Cima, nem vê-los na bancada, para já porque achavam que aquele não era o lugar deles, e depois porque era muito mais divertido ficar a encontrar e a apanhar bolas perdidas.
Não foi por isso que o Maurício perdeu naquele dia, muito pelo contrário, fez como fazem as pessoas daqui, contra tudo e contra todos jogou o melhor ténis da sua vida e despachou o Nuno, mais os seus amigos betos, com uns All Star rotos e sem tracção, por um humilhante 6-0, 6-0. Duas roscas.
Maurício, não se atirou para o chão, não chorou, nem correu para as bancadas. Correu para a rede para cumprimentar o adversário, mas este chorava compulsivamente, depois de ter partido a raqueta no chão de cimento e ter ouvido uma advertência do juiz árbitro:
- Ainda tens muito boa idade para levar uma palmada nesse rabo!

A esquerda cruzada, que era paralela, e que ficou conhecida como Rabo de Vaca. 

Foi assim que Maurício ganhou, por direito próprio, a presença no torneio que colocaria frente a frente todos os vencedores de Freguesia, primeiro divididos por concelho, e depois a finalíssima para eleger o concelho que iria disputar o torneio regional com os vencedores das outras ilhas. 
Maurício com os mesmos All Star rotos e aquela raqueta cambada foi eliminando adversário atrás de adversário, com um ténis sublime, que foi deixando as suas marcas no público que acompanhava o torneio, e nas suas mãos em forma de bolhas de água e calos, e que ficariam para sempre na memória coletiva e na pele do Maurício. Aquela esquerda que parecia cruzada, mas não era, efeito perverso da raqueta torta, ficou conhecido como o rabo de vaca. RDV. Também fazia muitos "hot dogs", ou seja passar a bola por entre as pernas, de costas viradas para a rede. Mas o RDV é que o tornou famoso.
Já não era uma surpresa para ninguém que estávamos perante um enorme talento regional para o ténis, nascido 20 a 30 números de polícia do Clube de Ténis de São Miguel, que transbordava de alegria. 

Os All Star afinal eram uns Sanjo.

No dia da final com o Terceira, sempre a Terceira, até o Nuno e os meninos da Fajã de Baixo estavam a torcer pelo Maurício. Nas bancadas só faltavam os seus pais, provavelmente os únicos da Fajã de Cima, que não sabiam de absolutamente nada do que se estava a pensar. Provavelmente, Maurício já teria levado uma ou duas cargas de porrada por ter estragado os All Star. Bom na verdade, nem All Star eram, mas sim uns Sanjo, uma imitação barata made in Portugal. Mas aquela final iria ser diferente. Eu, que aos meus 11 anos já tinha algumas poupanças juntei-me a alguns professores e compramos uns ténis próprios para ténis, da marca Adidas.
Maurício até parecia um gato com peúgas calçadas. Cheguei a temer pela sua performance, tal como temi pelo Benfica na final da Taça dos Campeões em 1988, onde usaram chuteiras e meias novas. Não foi por isso que perdemos, mas não foi bonito para um adepto ver constantemente as chuteiras a voarem dos pés dos jogadores do Benfica. 

De final em final até ao final.

Mas Maurício não era menino do Benfica, era menino da Fajã de Cima, e após ter perdido os primeiros 3 jogos de serviço, limpou o adversário, sem nunca mais perder sequer um ponto no seu saque, e convertendo à primeira todos os pontos de “break” que teve, inclusive o “match point”.
Maurício, saiu aos ombros dos meninos da Fajã de Baixo, loucos com uma vitória que no fundo jamais podia ter sido deles. Coitadinhos, criados em comiseração e Martinis Rosso nas festas "in" ao fim de semana. 
O Regional abriu-lhe as portas do Nacional. Mas o que estava para acontecer de seguida seria verdadeiramente inesperado. Maurício, campeão Nacional, contra mais um beto, desta vez do Estoril, decidiu abraçar a carreira de profissional. Talvez se tivesse defrontado rapazes de outras freguesias, freguesias com maior determinação, carências e resiliência, talvez nunca tivesse sido Campeão Nacional. E talvez não tivesse sido o primeiro jogador de ténis dos Açores, da Fajã de Cima, a jogar no circuito ATP.  

Era aquela altura do ano.

Toda a gente sabia, Junho era aquela altura do ano. Wimbledon. O maior torneio de Ténis do mundo. Maurício, com a tenra idade de 16 anos e meio, tinha pela primeira vez ranking e estatuto para disputar a qualificação que daria acesso ao quadro principal de Wimbledon. 
O “dress code” obriga os jogadores a usarem roupa imaculadamente branca. A roupa de Maurício era tudo menos imaculada, era um branco sujo, amarelo, ruçado, podre e que quase o desqualificou, não estivesse um lindo dia de Sol em Londres a bater de chapa num equipamento que até parecia acabadinho de sair da máquina lavar. Nestas coisas todo o universo se conjuga. Veja-se um dia de Sol radiante em Londres! 
Mas este foi o menor dos desafios, uma vez que Maurício raramente jogava sobre aquela superfície, não tinha experiência, não conhecia os ressaltos, nem como dialogar com a bola. A única coisa que sabia, ou estava prestes a descobrir durante as primeiras trocas de bola é que era tudo muito, muito rápido. Como se estivesse a jogar no Clube de Ténis de São Miguel com as bolas carecas que conhecera quando começara a praticar. Daí a dominar os seus adversários com um demolidor serviço rede foi uma questão de segundos, ou pontos. Adversário atrás de adversário, e cada vez mais confortável chegou a uma posição muito honrosa no quadro principal. Tão honrosa, que podia perder por três sets a zero e vir para casa coberto em glória. Na Fajã de Cima a Glória era muito boa, mas a taça era ainda melhor. 

Uma taça, nem que seja para lá colocar a fruta.

E como tal, não foi por estar diante do número 1 mundial, no jogo que o poderia tornar campeão de Wimbledon, que Maurício tremeu. Quer dizer, perdeu os dois primeiros “sets”, mas tremer nunca. Afinou o serviço, trocou o saco de raquetas, oferecidas por um grande patrocinador, pela velha raqueta cambada, com o encordoamento original, e para gáudio do público, incluído a rainha de Inglaterra, e Cliff Richard, que no início do jogo cantou Summer Holyday, tirou os seus velhos All Star/Sanjo da mochila e aí é que foram elas. Disparou mais de 120 ases, e fez uns 90 winners. De direita. Porque de esquerda foram uns 150, muitos deles com efeito RDV (rabo de vaca). Maurício foi o jogador mais novo do Mundo, Europa, Portugal, Açores e Fajã de Cima a ganhar Wimbledon. E sim, neste momento caiu. Caiu, chorou, rebolou e comeu um pedacinho de relva, que lhe soube exactamente à relva do monte que fica por detrás do campo de Ténis de São Miguel, e que subira milhares de vezes com uma bola medicinal entre mãos e a correr, como que a fugir do preparador físico, que era um mercenário qualquer do exército português. Foi a maior glória do Clube de Ténis de São Miguel, do Ténis regional e nacional, mesmo mundial. O menino que vindo da Fajã de Cima tinha ganho maior torneio de ténis do mundo, com uma raqueta cambada e uns ténis rotos.

220 quilómetros à hora, ou mais. 

Mas, e todas as histórias têm um mas, nem eu fui presidente do Clube de Ténis de São Miguel aos onze anos de idade. E o Maurício, é o Maurício dos cachorros. Nunca ganhou Wimbledon, mas desde os 16 anos e meio para a frente mostrou grande rapidez de mãos e de reflexos, bem como um grande jogo de pulso. Mas acima de tudo provou que a tenacidade, o empreendorismo e a capacidade de trabalho vencem em qualquer campo. 

Há mesmo quem diga que já terá servido milhares de cachorros a mais de 220 km/h.




* Desde que escrevi este texto, inserido numa série de textos sobre a Fajã de Cima, que me apercebi que quase todos sem exceção sabem desde o início que esta história é sobre o Maurício dos Cachorros. Coisas de terra pequena só existir um Maurício. 

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