E se não nos deixarem morrer?

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O meu computador morreu.
Foi uma morte assistida, atendendo a que acompanhei a par e passo a sua degradação. Desesperei com as suas hesitações, com os seus espera aí, está quase, é só mais um bocadinho. Não me lembro onde deixei isto, onde deixei aquilo. Isto sem contar com os seus contínuos ataques de narcolepsia.
Pronto, sabia que ele ia morrer mais dia menos dia. Mas nunca quis acreditar verdeiramente nisso, embora o desejasse secretamente e de modo ardente. Provavelmente consumido pela diabólica ira do mafarrico. Mesmo assim consegui manter formalmente a esperança na vida. Nunca é tarde para começar de novo, como tal, nós também podíamos começar de novo. Do zero. De fresco. Como se tivessemos acabado de nos conhecer, ainda em rasgados elogios, toques suaves e carinhosos e com todo ideal bem instalado de que aquele começar de novo podia voltar a ser o princípio de uma bela e longa amizade. Mas não cheguei a ter esta oportunidade, morreu nas minhas mãos, concedendo-me a graça última de salvar alguns textos únicos:
- Que te valham de alguma coisa!
Pensei ouvir. E aí, aí esqueci a raiva, a ira, a frustração, o tempo perdido a aturar um velho, não tinha outro nome era um velho, e chorei. Chorei como não me lembro de ter chorado por alguém. Acabava de perder o meu companheiro, pelo que chorar, mesmo que compulsivamente, se reveste de uma certa normalidade. Digo eu.
Fiz o luto, neguei ao ponto de jurar ter visto um pequeno sopro de vida, voltei a fazer luto e neguei novamente, mesmo antes da ambulância chegar.
Apesar do coma induzido havia ainda esperança num transplante. Seria uma questão de dias até que chegasse o novo orgão. Apesar da dor e do irracional arrependimento de todas as vezes que o joguei no ar, apartadando-o violentamente de mim, havia ainda uma réstia de esperança. Ficará uns dias internado enquanto o preparam para o transplante, isto sem a garantia que encontrem um dador compatível. É portanto uma esperança cinzenta como uma chiclete já sem sabor. Senti-o a querer morrer, até certo ponto também quis que morresse, arrependi-me e desejei-o de volta para o perder em definitivo. E agora já capacitado da sua morte não o deixam morrer, mas também não me dizem se irá viver. E eis como um dos únicos conceitos que tomava como garantido: a morte, fica inexoravelmente abalado.
E se não nos deixarem morrer?

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