Se hoje em dia toda a gente escreve, quem é que sobra para ler?



Um texto constrói-se tal como se edifica um prédio, as palavras são blocos. E dependente do jeito do construtor o resultado final pode muito bem ser um bloco de apartamentos T2, com péssimos acabamentos ali para os lados da Rinchoa. Este tipo de construção que se encontra nos subúrbios das livrarias, é cada vez mais comum. O intelecto é directamente proporcional ao tamanho do quarto e da sala, e a possibilidade de ouvir o vizinho a brigar com a mulher é tão grande como a de encontrar clichés e lugares comuns.
Mas há um pormenor interessante, um prédio, mau ou bom, edifica-se de baixo para cima. Aliás, a lei da gravidade não via a coisa a ser feita de outra forma. Já um livro, também ele bom, ou mau, edifica-se exactamente ao contrário: de cima para baixo. 
Ao contrário da natureza plácida e quase intermutável de um bloco, a palavra tem muitos sentidos, pode contar muitas coisas, não se mete num texto, como blocos num prédio.
Porém não deixa de ser curioso o seguinte facto: para construir um prédio bastará um punhado de homens valentes, com a escolaridade mínima, para assentar blocos. Já escrever um texto, supostamente, requer algum intelecto, alguma chama, alguma ideia e como tal estaria reservado para os homens inteligentes e com o dom da palavra. Doutos e estudados. 
Como vivemos num país de doutores, é impressionante o número de pessoas que escrevem. Arriscar-me-ia a dizer que existem mais doutores a escrever do que homens valentes, com a escolaridade mínima, a construir prédios.
Talvez andemos a glorificar a classe errada.
Ser um homem valente, com a escolaridade mínima neste país é quase como ser Astronauta. Não está ao alcance de qualquer um. Já escrever um texto tornou-se uma vergonha banal e alheia. 
 
- O meu Pai é melhor que o teu.
- O meu Pai é que é. É pedreiro. Tã na na na.
 
Tantos decretos de lei, epígrafes, alíneas, diplomas e gente formada com o dinheiro dos homens valentes e com a escolaridade mínima e que não servem para nada? Que têm de emigrar porque têm medo de serem homens valentes com ensino superior a assentar blocos.
Sabemos tudo. Sabemos que existem profissões muito dignas como as de Sr.Arquitecto, ou Doutor Engenheiro que não oferecem saídas profissionais há muitos anos. E o que é que fazemos? Tiramos mais cursos de engenheira e arquitectura, quando no fundo precisamos é de mais massa crítica para assentar blocos, arranjar sapatos, fogões e frigoríficos. Mas isso, segundo o que nos foi ensinado pela pedagogia materialista que os nossos pais nos incutiram não é digno.
Pronto, lá vamos ter que ir para a escola, outra vez. Agora para reaprender o conceito da palavra dignidade.

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