No princípio e no fim era a craca e a craca se fez memória.


(Foi preciso convidar o André Bradford para escrever sobre o 8º Jantar do 10 Fest para que eu conseguisse, finalmente, perceber como se faz um post num blog sobre gastronomia. Muito obrigado André.)









Não será qualquer região do mundo que pode apresentar um bocado de rocha a um visitante e dizer, sem receio: “A nossa essência mora aí dentro! Prove-a”. Os Açores podem. Basta que se encontre um exemplar de bico largo da Megabalanus azoricus, crustáceo marinho da ordem Thoracica, da classe Cirripedia, e que, depois de o cozer em água do mar, se convide o forasteiro a, de olhos bem fechados e palato bem descomplexado, degustar a alma açoriana. 
É o mar, o rocio e o salitre, o sol no basalto e a brisa cinzenta, a terra húmida e o musgo, a montanha e a beira-mar, tudo num bocadinho de carne rodeada de água salgada por todos os lados. São cracas, senhores, e contam ao paladar o segredo desta terra!
Os belgas Andy de Brouwer, sommelier e representante da quarta geração de proprietários do hotel restaurante Les Elevateurs, e Nico Corbesier, 24 anos, chefe titular do dito restaurante, perceberam toda a simbologia mística da craca (passe o claro exagero concetual) forçados pelo inelutável poder da necessidade. 
Cozinheiro belga que se preze tem de incluir um bife tártaro na ementa – e faz muito bem, digo eu, que comecei por achar que bife tártaro era um naco do lombo com molho tártaro e que desde que percebi que não era, que era da família dos pratos sem fogão, não tive coragem para dizer que não e converti-me em fã irredutível – e tem de o acompanhar com ostras, iguaria que pelas nossas bandas não se encontra fresca ou, se preferirem sinceridade, praticamente não se encontram, ponto final. Vai daí, viram-se forçados a descobrir a craca como nós nunca a tínhamos visto. 
Eles não sabem e provavelmente, se soubesse, dar-lhes-ia igual, mas acabaram por realizar uma das minhas maiores fantasias culinárias. A abrir o jantar de quinta-feira do 10 Fest, e depois de um dispensável amuse bouche com rabanete e pão de cerveja azeda, eis que um tártaro de carne dos Açores envolvido em sumo de craca e acompanhado da mesma em versão mousse tomou conta da sala e deixou todos os convivas em estado de ansiedade imediata. Caviar, passo; cous cous de couve-flor, sim sim…; molho de rábano, com certeza…  - podemos mergulhar para dentro da craca?!
A culinária a este nível é sempre uma narrativa e esta história é daquelas de final feliz obrigatório. Eu tinha a certeza de que sempre fomos muito limitados no aproveitamento das potencialidades das cracas, mas precisava de alguém que, com autoridade e habilidade, me fornecesse a prova irrefutável. Foi o que fizeram de Brouwer e Corbesier. Mesmo dando de barato que o cinza e o lilás não são a paleta cromática mais interessante em alta cozinha e que teria sido útil confirmar se o bico da craca teria largura suficiente para o diâmetro da colher de café que nos forneceram como utensílio, a textura e o sabor compensaram toda e qualquer insuficiência. Sublime, tal como sublime era a projeção desse paladar para o lombo de bovino regional. 
A partir daí foi sempre a descer. O tataki de atum patudo, não sendo nunca visto, manteve o nível de qualidade e execução, mas o consommé de cavaco com ravioli de coral do próprio, que podia ter sido uma segunda bofetada de luva branca nos puristas da cozedura salgada de mariscos (que os há e muitos nos Açores), acabou por ser uma experiência mal conseguida, iniciando o percurso de descida até aos infernos de uma bochecha de porco elástica e borrachenta (24 horas de forno?! Desligado?), cheia de fava verde sólida e em puré, e abafada no sabor por uma epidemia de queijo de S. Jorge de cura prolongada.
É por isso que vos digo, meus caros, que no princípio e no fim era a craca e que a craca se fez memória. Mesmo que seja heresia, sinto-me agora perfeitamente legitimado a tentar o tal risotto de craca que me povoa a imaginação há séculos e que, no fundo, é a razão de ser da brilhante iniciativa da Escola Turística e Hoteleira: sermos ousados com aquilo que é nosso, nem que para isso tenham de vir os outros dar o exemplo.  

O Rei Jaime I terá dito um dia: “Corajoso não foi o primeiro guerreiro. Corajoso foi o primeiro homem a tentar comer uma ostra”. É esse tipo de coragem que para o caso nos interessa e que, mesmo à falta de comprovação científica, estou convencido , nos fará progredir enquanto região capaz de posicionar com retorno os seus produtos de qualidade. A cada 10 Fest renasce a esperança!  








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