E se conseguíssemos medir o Universo com receitas de bacalhau?

Escrever sobre comida é um pouco como escrever sobre respirar. Os dois são essenciais à vida, como a conhecemos. Porém, só valorizamos o respirar, quando não podemos ou temos dificuldades em fazê-lo. Se não, nem nos lembramos de respirar. Respiramos. Já comer, bom, comer queremos quando temos fome também, óbvio. Mas também queremos quando a fome passa e fica só a gula, abandonada à sua sorte. Queremos comer um doce, porque estamos mais amargos. Queremos comer porque um dia não são dias. (E é verdade, um dia não são dias. É um dia, para ser mais preciso. E o dia seguinte também, logo um dia de cada vez nunca serão dias. Venha lá a bola de gelado e deixem-se de raciocínios parvos.) Casamos e o que é que fazemos até antes de consumar o amor? Assinamos os papéis de divórcio e onde é que vamos jantar naquele dia? E enquanto o casamento durou, o que fizemos antes ou depois de consumar o amor? E o que o fizemos quando já não havia amor para consumar? Comer rima com redondo. Não só nos deixa redondos, como é um prazer redondo. Sem arestas. Aqui e ali uma espinha, é verdade. Ou um osso mais duro de roer. E podia aqui continuar com analogias gastronómicas sobre a vida até ao infinito, ou mais longe ainda, até à última receita de bacalhau inventada, que fica num lugar muito mais remoto que o infinito. Se o universo se medisse em receitas de bacalhau, o Sol continuaria a ser a estrela mais perto do planeta Terra, logo depois do Bacalhau com Natas ou Bacalhau à Braz. E por aí fora: Bacalhau Espiritual, Marte, Zé do Pipo, Vénus, Bacalhau com Todos. Quando acabassem os planetas do sistema solar, aí viria a punheta de bacalhau e depois o Bacalhau à tia Aninhas, e assim por diante. Comer é o universo, onde cabe um universo inteiro lá dentro e mais umas quantas receitas de bacalhau. Fosse eu um gastronauta para chegar a todas elas. Por isso, e estranhamente, ninguém briga por comida, tirando a leitura base de brigar pela sobrevivência. A partir daí quase tudo se resume a um sentido de decência, respeito e até uma certa privacidade. O que gostas de comer é uma grande merda, mas não temos que brigar por causa disso. Sigamos atentamente o presidente e o líder da oposição num constante desentendimento sobre as medidas que poderão tirar o país da miséria, desejando secretamente que um piano caía em cima da cabeça do outro. Sentam-se à mesa e fazem o quê? Comer é um tratado de paz. Comer é o Natal todos os dias. Não é preciso perceber muito gastronomia ou de alinhamento dos planetas, pois está mesmo à nossa frente, servido num prato branco, de preferência. Mas não vamos brigar por isso.

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